Resumo
Fasciíte necrosante (FN) é descrita como uma infecção bacteriana destrutiva do tecido subcutâneo e fáscia superficial, que progride rapidamente e está associada a altos índices de mortalidade (FINK; CHOUDHURI; DAVIS, 1999; KAUL et al., 1997) A FN também pode ser denominada como gangrena estreptocócica hemolítica, úlcera de Meleney, gangrena dérmica aguda, gangrena hospitalar, fasciíte supurativa e celulite necrosante sinergística.
Inicialmente, a FN pode apresentar-se como uma infecção mais superficial de partes moles, como celulite ou erisipela. Devido à alta frequência, à relativa facilidade no diagnóstico e à boa resposta ao tratamento dessas infecções mais superficiais, pode-se incorrer em falhas terapêuticas nos casos que evoluem com comprometimento da fáscia superficial e tecido subcutâneo, com elevado potencial para complicações graves.
Há diversos relatos na literatura mostrando o aumento da frequência e severidade das infecções de partes moles na FN, principalmente em indivíduos imunossuprimidos, seja por uma doença de base ou por outras condições, que também podem ocorrer em indivíduos saudáveis.
A infecção bacteriana conhecida atualmente como FN, foi descrita no final do século XVIII, e era tida como uma das mais terríveis e fatais doenças que acometia os militares da época. Em 1924, Meleney descreveu uma doença ulcerosa progressiva, chamada “gangrena estreptocócica hemolítica aguda”, intensamente dolorosa, produzida por uma associação sinergística de streptococcus e estafilococus. Na época apresentava um índice de mortalidade em torno de 20% e foi finalmente denominada “fasciíte necrosante” (KAUL et al., 1997). O Streptococcus hemolítico e o Staphylococcus aureus, isoladamente ou em sinergismo, são com frequência os agentes iniciadores da FN. No entanto, outros patógenos aeróbios e anaeróbios podem estar presentes, incluindo Bacteroides, Clostridium, Peptostreptococcus, Enterobacteriaceae, coliformes, Proteus, Pseudomonas e Klebsiella. O Bacteroides fragilis é geralmente encontrado como parte da flora mista, em combinação com Escherichia coli. Eles não causam a infecção diretamente, mas podem contribuir na redução da produção de interferon e da capacidade fagocitária de macrófagos e células polimorfonucleares.
A FN é classificada em tipo I e tipo II. A do tipo I, ou celulite necrosante, é caracterizada pelo isolamento de pelo menos uma espécie de micro-organismo anaeróbio obrigatório, como o Bacterioides e Peptostreptococcus, em combinação com um ou mais micro-organismos anaeróbios facultativos, como o Enterobacter e os estreptococos não pertencentes ao grupo A (MORANTES; LIPSKY, 1995). É mais comum após cirurgias e em pacientes com diabetes e doença vascular periférica (FINK; CHOUDHURI; DAVIS, 1999). O tipo II, ou gangrena estreptocócica, é caracterizado pelo isolamento do Streptococcus do grupo A ou associado ao Staphylococcus aureus. Ocorre após ferimentos penetrantes, procedimentos cirúrgicos e queimaduras e traumas.
Os fatores predisponentes para FN incluem as seguintes condições: doenças crônicas (doenças cardíacas, doença vascular periférica, doenças pulmonares, insuficiência renal e diabetes mellitus), abuso de álcool, condições imunossupressoras (uso de corticosteróides sistêmicos, doenças do colágeno, infecção pelo HIV, transplantes de órgãos sólidos e doenças malignas em tratamento), uso de drogas endovenosas, cirurgias, varicela em crianças, úlceras isquêmicas e de decúbito, psoríase, contato com pessoas infectadas por Streptococcus e traumas cutâneos penetrantes e fechados ou até mínimos (KAUL et al., 1997; STEVENS; BRYANT, 2017)
Apesar de a FN poder acometer pacientes de qualquer idade, há um aumento significativo da incidência em idosos (acima dos 65 anos), como em pacientes com pelo menos uma doença de base. No entanto, vários relatos na literatura enfatizam a ocorrência de infecções estreptocócicas graves e FN em adultos jovens, previamente sadios (ORD; COLETTI, 2009; BERNAL et al., 2012). O acometimento de crianças é menos frequente, e cerca da metade dos casos ocorre em pacientes com varicela. Não há predileção quanto ao sexo.
O simples mascaramento dos sinais e sintomas de uma infecção preexistente contribui para o retardo do diagnóstico, o que pode permitir que uma infecção simples possa progredir para FN (STEVENS; BRYANT, 2017).
Características clínicas
A FN inicia como área eritematosa, dolorosa e localizada, que aumenta em horas ou dias, associada a edema tecidual importante. Em seguida, ocorre cianose local e formação de bolhas de conteúdo amarelado ou avermelhado escuro. A área envolvida torna-se rapidamente demarcada, circundada por borda eritematosa e recoberta por tecido necrótico. Nesse momento, desenvolve-se anestesia da pele que recobre a lesão devido à destruição do tecido subcutâneo subjacente e trombose dos vasos nutrientes, causando necrose das fibras nervosas. A pele é inicialmente poupada, mas com a extensão do processo necrótico, torna-se comprometida. Comumente, o edema pode ser observado antes de outros sinais cutâneos aparecerem.
A dor muito intensa e desproporcional, mesmo após o início do tratamento é um indício importante de FN (FINK; CHOUDHURI; DAVIS, 1999). A necrose da fáscia é tipicamente mais extensa do que sugere o aspecto clínico. Com o acometimento de planos mais profundos, pode ocorrer formação de crostas necróticas extensas. Sem o tratamento, é possível haver envolvimento secundário da camada muscular, resultando em miosite ou mio necrose. Na fase inicial, pode ser difícil distinguir entre FN e celulite (MORANTES; LIPSKY, 1995).
Complicações
Aproximadamente 50% dos pacientes com FN apresenta a síndrome do choque tóxico estreptocócico, que é uma condição aguda, fulminante com choque, trombocitopenia, coagulação intravascular disseminada e/ou falência de múltiplos órgãos (KAUL et al., 1997). É um processo rápido e progressivo, que mata de 30 a 60% dos pacientes em um prazo que varia de 72 a 96 horas (FORNI et al., 1995). Outras complicações potenciais são a insuficiência renal aguda, coagulopatia, alterações hepáticas e síndrome da angústia respiratória do adulto.